quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Ouro e cobre, notícias e reality shows

Ainda que este meu blog seja um recém-nascido, acredito já ser tempo suficiente para que eu mesmo sinta falta de um tema pelo qual tenho especial apreço: comentar o movimento da indústria cultural, especialmente das mídias informativas, no capitalismo contemporâneo. Não esperem, nem temam, por um tratado científico que esgote a análise da mídia. Só não busquem a superficialidade. O objetivo, no fim das contas, é despertar nos meus 3 ou 4 leitores a curiosidade de buscar elementos para fazer a observação crítica por si mesmos - ou compartilhar e debater sobre o tema. Desconfio que meus leitores já o fazem, mas isso é outra história...

Pois bem! Como quase todos devem saber, há quase um mês, um grupo de 33 mineiros ficou preso na mina de San José, no norte do Chile. A mina pertence à mineradora San Esteban, indústria de mineração privada responsável por empregar a mão de obra necessária para extrair ouro e cobre para vender ao governo chileno.

Não me estenderei em descrever outros detalhes, dada a farta oferta de informações sobre o caso. Mas sugiro sim a leitura de ao menos algumas dessas notícias, para que se compreenda melhor a postagem. Atenho-me ao modo como tais informações têm chegado aos brasileiros.

Há exatamente uma semana, eu e um grupo de pesquisadores da mídia comentávamos, em aula, sobre o caso dos mineiros. Conversávamos sobre a dinâmica do capitalismo e tocamos no ponto que se referia à destruição de forças produtivas (instrumentos, maquinário, fábricas e mão de obra etc.) quando o desenvolvimento destas representavam uma ameaça ao acúmulo de capital.

Chegamos, assim, ao caso dos mineradores presos e, imediatamente, surgiram as seguintes questões, ao mesmo tempo ilustrativas e explicativas: como é possível que uma sociedade que desenvolveu tecnologia para enviar os homens ao espaço, que é capaz de localizar e explorar petróleo a 7 km de profundidade, ultrapassando uma barreira de sal petrificado, que já consegue teletransportar matéria, não seja capaz de retirar 33 trabalhadores de uma mina com 700 metros de profundidade antes do final do ano? Como é possível que só depois de vários dias, se tenha dado falta dos mesmos 33 trabalhadores? A mineradora realmente não sabia, ninguém apareceu por lá esses dias?

A despeito de qualquer declaração tecnolóide que nos possam oferecer, absolutamente nada justifica tal acontecimento, exceto uma coisa: aqueles 33 trabalhadores, aquela força produtiva, passou a representar um entrave à acumulação de capital da mineradora San Esteban. Retirar aqueles trabalhadores de lá geraria um déficit para a San Esteban. Em casos como esse, a lógica da acumulação de capital diz: destruam as forças produtivas! A mina já havia sido condenada por não oferecer segurança e agora haviam 33 malditos motivos para não se mexer mais naquele lugar.

Por que esse desenvolvimento inicial é importante? Pelo simples fato de que nenhum veículo de mídia tocou nesse ponto - diga-se de passagem o ponto fundamental para entender tamanho desleixo em relação aos trabalhadores presos. Nesse meio tempo eu já havia visto notícias com infográficos, notícias, fotos dos 33 trabalhadores, declarações de familiares e do governo chileno. Ainda durante a aula a que me referi, comentei que era mais fácil que se fizesse daquela situação um verdadeiro reality show e, posteriormente, um filme (nos moldes dos filmes do 11 de setembro estadunidense, entre tantos outros), do que iniciar o resgate dos trabalhadores.

Alguns dias depois o mundo explodiu em veiculação de vídeos gravados pelos mineiros - supostamente vídeos para acalentar os familiares, para que soubessem que eles ainda estavam vivos, confirmando o que eu havia comentado. O show da vida real ganhou o mundo.

A veiculação aconteceu ainda quando estavam mornas as primeiras notícias, já que o salvamento não havia sido iniciado de fato, e colocou fogo alto nas notícias, renovando o trunfo da audiência de sites, jornais, revistas e televisão. Em uníssono, todos dizem: estão todos bem! Os vilões são os donos da mineradora, que já teve seus bens bloqueados! Até o final do ano, os felizes mineiros estarão com suas famílias! Eles já não estão com depressão! Eles vão ganhar playstation e joguinhos para se divertirem até que sejam salvos! A NASA chegou, olha a cavalaria bem a tempo!

Uma revista de circulação nacional publicou na capa: "os 33 mineiros serão mantidos vivos. Será a maior experiência de confinamento em profundidade da história da humanidade". Como até todo jornalistazinho mal formado sabe, manchetes são o cartão de visitas, o convite à leitura. Para garantir isso, entre outras características, as manchetes devem surpreender ou despertar a curiosidade do leitor em potencial. Pois veja que surpreendente! Aquelas 33 criaturas incautas serão mantidas vivas! Isso sim é que é surpresa, eu já estava certo de que seriam abandonados para morrer... E que fantástica experiência! Conseguimos 33 voluntários para saber os efeitos de um confinamento de 4 meses em um espaço de 25 metros quadrados (ou seja, menos de 1 m² por pessoa), de onde não é possível pedir pra sair, nem ser votado no paredão, muito menos ganhar R$ 1 milhão.

Se houveram manifestações de apoio aos mineiros que não partiram dos próprios familiares, nenhuma linha foi publicada. Assim como nenhuma linha sobre a lógica que conduz ao desprezo pela vida de 33 trabalhadores, primeiro enviados a um local condenado por falta de segurança, segundo por não haver a empresa comunicado o acontecido ou sequer feito alguma tentativa de resgate. Hoje foi a San Esteban. Quantas San Estebans já passaram e quantas estão por vir? Não é o acaso que produz tanta desumanidade.

Pode-se argumentar que, não fosse a presença da mídia, o resgate demoraria muito mais, talvez não acontecesse. É possível. Mas chamo atenção para o fato de que o capital, mesmo quando potencialmente pode sofrer um revés, converte-o em mercadoria. Nesse caso, a mercadoria-audiência da mídia. E sensacionalistas são só os programas policialescos, não é mesmo? Vejamos até onde vai durar tamanha preocupação da heróica mídia com o caso, quando um novo fato surgir...

P.S.: sugiro prestar atenção à letra de nosso humilde player, que embalou essa postagem...

5 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Pois é, meu caro superjornalista! Aqui, em terras brasilianas (para aludir aos tempos da colonização- escravidão, qdo o Brasil ainda nem era Brasil) observamos casos bem de baixo do nosso nariz: a mão-de-obra no corte da cana. Q a mídia, ao meu ver, nunca foi favorável, em suas notícias, a este trabalhador; retratando as reais condições de trabalho no campo ... apenas exaltando o mercado produtivo de etanol, açúcar e afins.


    Mídia?! em qual confiar?!



    Parabéns (de pé) pelo post.


    Eu posso ser suspeita pra falar (talvez) pq o temário "trabalho" sempre me chama atenção! Mas infeliz daquele que abre a boca pra dizer que outro fator determina a vida dos homens numa sociedade de classes antagônicas.

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  3. Pois é, Júlio. Vale lembrar o que a mída fez no Haiti, em que determinada repórter da emissora de maior audiência "pisava" numa vítima nos escombros apontando, no melhor estilo "filma o corpo" do ramo policialesco. E isso sem se voltar às dificuldades do país, à "ajuda" brasileira numa intervenção cultural de forma forçada...

    Sua análise sob a ótica do trabalho é sensacional. Não precisa de acréscimos sobre.

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  4. lendo o post (e o bom foi ter lido o comentário da babí, pq vai certin com o meu) uma coisa me ocorreu, esses dias eu pesquisava alguns materiais sobre a questão da cana-de-açúcar no Brasil Colônia e no atual. eis que me deparo com um documentário norte-americano abordando a situação do trabalhador canavieiro. uma piada, kra. sabe aquela visão conformista da história?! pois bem, os depoimentos dos trabalhadores giravam em torno de como até que é bom ocupar a "função" que eles têm. Lg depois, me confronto com outros depoimentos, agora do doc. tabueleiro de cana (tão bem produzido pela CPT), falando do quanto eles vivem condições nada humanas e do quanto ñ tinham alternativa pra fugir do seu algoz, a desigualdade entre os cidadãos (segundo um dos entrevistados). e ñ precisa ser muito acadêmico pra saber o motivo disso td neh, ñ mesmo. o bom foi ter terminado o dia com a conclusão dos meus alunos... nem a eles o sistema engana!

    Brilhante post, meu caro! que venham mais críticas como essa, muito legal mesmo.

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  5. ah, errata: tabuleiro de cana xadrez de cativeiro. aproveito pra deixar um trecho bem legal do documentário em questão. http://www.youtube.com/watch?v=-j2dkKu3qwk

    vale ser visto!

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