quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Da neutralidade do ser à neutralidade política

Vejamos a questão pelo prisma de que, apesar da indignação que me transborda de tempos em tempos (para ser mais preciso, de dois em dois anos), o processo eleitoral propicia um leque de reflexões interessantes. Já passamos por esse tema no blog nas últimas postagens, mas hoje vou me aventurar em um campo, digamos, mais filosófico.

Tomemos, como ponto de partida, o mais básico sobre a questão do ser. Existem, como bem sabem os curiosos dessa questão, diferentes planos do ser. O ser inorgânico compreende toda sorte de coisas existentes não vivas - como as pedras e a água, por exemplo. O ser orgânico compreende os reinos animal e vegetal. Para os que se beneficiam da falsa ideia (colorida de científica) de que o ser humano está contido no reino animal, tal qual as demais espécies, tudo para por aqui. Porém, aqui vamos tomar, sob todas as evidências concretas, a existência de um plano do ser que não se reduz a nenhum dos dois já existentes, mesmo tendo como suporte o corpo orgânico do reino animal - o ser social (a obra mais contundente a esse respeito é A Ontologia do Ser Social, de Georg Lukács).

No que nos interessa aqui, vamos pontuar a seguinte questão: cada um desses planos do ser é marcado por uma relação de reprodução/transformação do seu próprio ser no decorrer de sua existência. À medida em que o plano do ser se torna mais complexo, essa relação se altera. Por exemplo, no plano do ser inorgânico, essa relação está quase fundamentalmente calcada na reprodução (no sentido de continuidade de suas características), pelo simples fato de que ele por si só, não se altera. Somente por uma conjunção de fatores, sobretudo de influências externas, um ser inorgânico se transforma em um novo ser inorgânico. Para isso, vale o bordão água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.

No caso do ser orgânico, a balança da relação reprodução/transformação se altera em direção à transformação. Com limites, obviamente. Em um ser complexificado, as possibilidades de transformação são substancialmente maiores. Com efeito, observa-se a adaptação e transformação de vegetais e animais ao longo do tempo, para continuarem a sobreviver e se reproduzir como vegetais e animais, o que para uma pedra é absolutamente desnecessário.

Já o ser social, em sua complexidade muitas vezes maior do que os demais, é aquele que está mais habilitado a transformar as condições necessárias para sua sobrevivência e, consequentemente, se transformar. Essa transformação ocorre, para o ser social, tão urgentemente quanto for necessário. Isso implica em que reprodução e transformação, para o ser social, obedecem a uma lógica radicalmente distinta da dos seres inorgânicos e orgânicos.

Entretanto, há algo de comum nessa relação de reprodução/transformação, que se aplica invariavelmente aos três planos do ser de que falamos: a impossibilidade de ficar "em cima do muro", de uma "neutralidade" frente às questões colocadas para cada um deles. Nesse caso, não se trata de uma via possível, nem mesmo para o ser social. Ou o ser - inorgânico, orgânico ou social - estará (se) reproduzindo ou (se) transformando. Daí temos outra constatação: "neutralidade" implica em reproduzir a condição em que se encontra o ser.

Mais uma vez, isso se torna tão complexo quanto for complexo o ser em questão. Para o ser social, portanto, temos uma complexificação muito maior da questão, uma vez que não se trata meramente de "reproduzir a espécie" como no caso dos seres orgânicos ou de "continuar a existir" no caso dos seres inorgânicos. Trata-se ainda (e sobretudo) de reproduzir ou transformar as relações sociais que se estabelecem entre os homens, mediante tomadas de posição de cada indivíduo.

Eis o ponto em que gostaríamos de chegar: nas relações que se estabelecem entre os seres sociais (econômicas, políticas etc.), a neutralidade, tal qual para os demais planos do ser, implica na reprodução. Não simplesmente da espécie, mas das próprias relações sociais.

Retomando o começo da postagem, quando mencionamos o processo político-eleitoral, e a partir do que acabamos desenvolver, podemos simplificar a questão na seguinte afirmação: é impossível não tomar partido! O voto nulo é uma questão que não pode ser completamente desenvolvida aqui, por uma série de razões, dentre elas por ser em si um tipo de tomada de posição que pode conotar tanto uma quanto outra posição - o que remete à existência ou não de uma ação política com a finalidade específica de negar a utilidade do processo eleitoral burguês.

Ao fim, podemos concluir que anular-se, afirmar-se neutro acerca das relações sociais que, no campo da política (não só eleitoreira, mas da ação e da atividade política como um todo), disputam a reprodução ou transformação da sociedade, é em si uma tomada de posição. E uma tomada de posição pela continuidade das relações sociais já estabelecidas.

5 comentários:

  1. de pronto, venho dizer q o texto ficou uma blz. muito bem articulado. deixa eu só pontuar umas impressões:
    1) ñ sei... pode ser q seja viagem minha, mas fiquei lendo o post e imaginando que tipo de leitor do teu blog se instigaria mais com essa proposta, digamos, mais filosófica. então eu pensei que vc poderia abrir seções com o objetivo de te dar mais liberdade para escrever dessa forma e já direcionar aquele(a) frequentador(a). sabe pq digo isso?! pq no teu blog há textos de caráter mais leves e outros bem mais aprofundados, tudo junto, até sobre uma mesma temática. Só sugestão tá!
    2) agora sobre o texto. o finalzinho dele me lembrou uma frase que o Valério Arcary gosta de dizer para discutir sobre a questão da neutralidade do ser: "ficar em cima do muro é ficar sempre do lado do mais forte"!

    é isso, arantes, parabéns pelo rompante pós-dissertação. ficou joinha.
    :)

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  2. 8Que texto, Júlio! Concordo com a questão da diferença do ser social para os outros seres, um alguém me constante transformação, para além de ser "naturalmente" exigido.

    Sobre a questão da neutralidade também concordo sem dúvida alguma, acreditar num posicionamento desse tempo é se distanciar do que é/se tornou o ser humano.

    Quanto à questão do voto nulo, geralmente é mais uma forma de protesto, de evitar ter de escolher no "menos ruim" e numa representação dita popular que na prática atende a interesses de setores bem mais específico que no termo geral "povo", forma falsificadora da luta de classes, que tenta igualar a todos.

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  3. Uau! mais um vez um post muito bem construído.
    Me lembrou certa discusão que tive no twitter essa semana.
    Pra mim, sem dúvidas o "não tomar partido" ja se trata de uma escolha pontual e de tomada de partido sim! E parafraseio a companheira Rosa Kahlo qdo ela cita Valério Arcary (vide 2comentários acima).
    A questão da adpatação me fez lembrar o Darwinismo Social. E qto ao ser, o velho Marx na sua teoria da alienação: O ser orgânico (genérico), produto do homem e suas relações com a natureza. E as atuais relações entre esses seres, estão tão animalizadas que eles so encontram o prazer de vida nas atividades animais (da cientificidade colorida) tais como: comer, beber, namorar, ibernar...enfim...
    Parece viagem minha postar isso aq..mas foi a primeira coisa que lembrei ao ler teu post!

    Reflexivo!


    muito bom!


    GRande bjo!

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  4. então, comentando os comentários:

    - kahlito, vou ver um jeito de abrir as seções de forma que fique mais organizado, valeu pela dica! E pow, que bom que minhas escrivinhações estão fazendo lembrar gente grande \o/

    - anderson: o voto nulo pode sim constituir um protesto, mas se não há uma ação organizada e massificada (não gosto do termo, mas não lembrei de outro) em torno dessa proposta, se for um ato meramente individual, perde efeito.. discussão fértil pra pouco espaço hehehe...

    - Suéli: não tem viagem nenhuma postar suas impressões, a ideia é justamente essa, fazer brotar a reflexão.. e se trata de uma questão interessantíssima que vc coloca, qual parte dos manuscritos? quero ler :)

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  5. Pois então desenvolva suas posições a respeito do voto nulo. E é assim? Joga o problema e deixa pra lá. rsssssss. Obviamente, neutralizar-se é contribuir para o status quo, mas, no âmbito do que está sendo discutido aqui, neutralidade e voto nulo não são a mesma coisa: “uma tomada de posição pela continuidade das relações sociais já estabelecidas.”

    Voto nulo, sim. Exatamente por questionar o sistema, a tal democracia do Estado burguês. O vota não trás transformação social, mas antes legitima a “continuidade das relações sociais já estabelecidas”. Mudança social se faz com luta diária, nas ruas, nos locais de trabalho... e não no parlamento, escolhendo alguém para tomar as decisões por mim e por milhões de pessoas. Agora, claro que o voto nulo pelo voto nulo, como uma ação individual, de abster-se de qualquer debate, é negativo. Mas, um voto nulo conscientemente classista não é só um ato de apertar numa tecla da urna, antes disso há uma militância cotidiana. Neste caso, é sim uma ação organizada, mas um tanto distante de se tornar massificada.

    Mas, em fim, não é uma questão de princípio.

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