segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Outros diálogos de noites cariocas

Ir ao teatro no Rio de Janeiro pode reservar agradáveis surpresas. Um bom exemplo é que dia desses - em setembro, para dizer a verdade - terminei por assistir a uma peça sem que precisasse pagar a entrada, que não foi cobrada no último dia das apresentações. O que foi bom duplamente, já que a peça mesmo não era lá muito boa.

Parte dessas surpresas (talvez a maior parte), no entanto, não são agradáveis. E mesmo as agradáveis, como a que acabo de citar, pode se revelar complicada. Especialmente se você está hospedado na distante Zona Oeste da Região Metropolitana, em um bairro um pouco afastado do centro dessas cidades.

O Relógio marcava 23 horas quando atravessei, acompanhado de 3 amigos, a Avenida República do Chile, saindo do Teatro Nelson Rodrigues em direção à parada de ônibus mais próxima. Meus acompanhantes se dirigiam à Penha, o que me deixou sozinho em poucos minutos.

Era a segunda vez que eu visitava a cidade, então não havia ainda aprendido todas as rotas e melhores paradas de ônibus que melhor me encaminhassem ao bairro de Vila Kennedy, antigo conjunto habitacional da cidade de Bangu, que também já foi um bairro do Rio.

Fiz o que me pareceu mais seguro, diante da situação. Tomei um ônibus até a estação do metrô de Coelho Neto, onde pegaria um ônibus expresso. Essa parte saiu como previsto e por volta de meia noite e meia eu saltava na Avenida Brasil, ao lado da Unidade de Pronto Atendimento da Vila Kennedy. Foi aí que começou a parte menos agradável e não menos surpreendente da noite.

Meu destino final era a Estrada do Guandú. Não a do Guandú do Sena. A do Guandú, somente, que começa na altura do número 3500 de sua irmã. Pois na Praça Dolomitas, àquela altura, não havia um transporte coletivo sequer para o meu destino. E olha que eu nem estava à procura de um regularizado, me contentaria, como vinha fazendo há dias, com um "clandestino" qualquer que me levasse para casa.

Não tardou até que eu percebesse o movimento de mototaxistas, também clandestinos, saindo e chegando da praça. Tratei de negociar com uns poucos o meu destino, mas os que ali estavam quando cheguei trataram de encontrar outros passageiros, que "já estavam na fila". Cerca de 40 longos minutos depois, um jovem de não mais do que 17 ou 18 anos me perguntava melhor o meu destino...

- Vou para a Estrada do Guandú - informei ao meninão com olhar perdido como se puxasse pela memória, sem saber, ainda, que haviam duas Estradas do Guandú, mas uma era a tal do Sena.

- É ali no presídio?

Ele se referia ao complexo prisional de Bangu, digamos, aos fundos da Vila Kennedy.

- Não, é depois. Vai pela estrada do presídio, mas é bem depois, entrando na Igreja Católica - que pelo tamanho, imaginei que seria uma referência, mesmo não ficando à beira da estrada.

- Que igreja?

Percebi a insegurança do rapaz, mas vesti o disfarce de carioca e tentei convencê-lo sem que percebesse exatamente onde ficava o destino, pois eu sim já havia percebido que algo de muito errado havia em que 3 mototaxistas tivessem se recusado a me conduzir até lá. Tendo êxito, seguimos. Mas tão logo eu já estava ressabiado.

- Esse caminho pelo meio da Vila é meio estranho né, tem muito sobe e desce.

- É que aqui a gente já sai perto do batalhão, é mais rápido - me disse o rapaz, agora com aparente segurança, entre uma cambaleada e outra da moto.

De fato. Antes de passarmos pelo presídio, cruzamos também pelo 14º Batalhão da polícia militar do Rio de Janeiro. Mesmo já havendo passado algumas vezes por ali, as duas locações em questão sempre me fizeram correr um longo arrepio, menos de medo do que de melancolia pelo que ali se passava diuturnamente. Pouco depois, foi a vez do rapaz retomar a conversa.

- É por aqui mesmo?

- Sim, é por aqui, mas pode ir em frente até a igreja. Sabe onde fica uma escola municipal de ensino infantil?

- Hum... não lembro.

- Olha, onde eu vou saltar ficam as kombis que vão para Campo Grande.

- É na Carobinha?

O nome me soou familiar, porque já o tinha ouvido, mas eu não tinha ideia se esse era o mesmo lugar de que eu falava. Resolvi arriscar mais uma vez à carioca, mas um pouco vacilante.

- Olha, eu acho que é perto, mas não é lá não. Mas quando a gente avistar a escola, você vai se lembrar.

O ruído do motor fez a gentileza de dissimular um silêncio breve, ainda que assim não parecesse, revelando a minha insegurança, certamente compartilhada por meu guia. Mais uma vez fui eu que resolvi exorcizar o silêncio.

- O pessoal não gosta de vir muito pra cá por causa da distância não é? - obviamente eu não estava certo disso, certamente não se tratava da distância.

- Sabe o que é? A gente não pode entrar muito por aqui não, porque aí pra dentro tem as 'milícia' que não deixa a gente transportar ninguém pra lá, porque é área deles.

- É sério?! - Meu espanto não era tanto pela revelação, mas pela indignação. Não que eu não tivesse ficado ainda mais preocupado, pelo contrário.

- É sim, na Carobinha é tudo área de milícia, aí a gente não pode ir.

A essa hora, avistar a escola municipal veio a calhar.

- Olha, é essa a escola que te falei.

- Ah tá, aqui tudo bem. Mas se fosse mais pra frente não ia dar não, porque os caras param a gente pra perguntar se a gente tá fazendo transporte.

Espantado, resolvi que já era hora de encerrar a conversa.

- Certo, quanto é? - ele ficou novamente com o olhar perdido.

- Sete reais.

- Tá, aqui tem 10. Valeu mesmo por me trazer.

- Você mora aonde?

- Entrando aqui uns 500 metros - apontei para a Estrada do Guandú que não era do Sena.

- Eu te levo.

- Sério?! - essa foi outra das boas surpresas da noite - É, já estamos aqui e é pra lá que você não pode ir, então me deixa lá que vai ser uma mão na roda.

Mais alguns metros e uns agradecimentos de ambos e eu entrava em casa. Dormi um sono bastante tranquilo e no outro dia relatei o acontecido aos meus familiares hóspedes, que foram gentis em me chamar de "sem juízo como o seu irmão".

Ah, mas se todo o problema fosse a minha falta de juízo...

5 comentários:

  1. Muito jogo de cintura e um pouquinho de aço na constituição dos nervos, né não? Mas não pude evitar de rir, no final... O problema mesmo não é a falta de juízo... É o mundo que não é lá muito benevolente com os desavisados. Eis um problema dos mais tristes...

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  2. Difícil o negócio. Mas imagina se não tivessem mototaxistas. Só percebi o quanto são importantes em Campina Grande, onde são oficializados.

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  3. É um sem juizo mesmo! ehehehehehehe Mas veja so a que ponto está chegando a humanidade: as limitações entre os homens num imbrolio concreto e subjetivo.

    De fato, seus relatos cariocas, so me fazem ter uma certeza (a principio) Não tenho a minima vontade de conhecer o RJ

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  4. Bárbara, pelo menos vá conhecer. Dependendo de onde você ficar (ou o que tiver que fazer) na cidade, você vai se apaixonar ou nunca mais querer voltar.

    Existem dois "Rios". O que continua lindo (o de quem vai passear e fica, por exemplo, em Copacabana, como eu fiz) e o barra pesada, da galera que mora e precisa passar por áreas como essa, que o Júlio relatou. Mas a visita vale a pena, seja qual for o caso.

    O bom é que minha namorada tá doida pra que a gente vá morar lá.

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  5. putz, Júlio! quantos endereços, pontos, referências! ô memória!! ô inveja! Bem, como meus dois neurônios estão de férias há alguns meses, depois que Pêcheux e companhia entraram na minha vida, confesso que tive que reler seu texto algumas vezes. fiquei tonta só de ler! vem cá, vc já ouviu falar do ditado "o barato (no seu caso, grátis) que sai caro"?

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